Histórias do Rio Jaguaribe

Mortes por afogamento em diversos pontos do rio fazem do curso de água também um caminho de medo Saboeiro / Jucás / Limoeiro do Norte. Nem bem começa a ter água, o Jaguaribe se agiganta, basta ter um açude que perenize suas águas. Ser um rio seco que enche conforme o volume de chuvas dá ao lugar uma identidade que nunca se encerra, daí o mistério. E, quando menos se espera, leva alguém. Engole como quem tem fome, mas depois cospe. Placas indicam os riscos, mas muitos ainda são arrebatados por suas águas. Fotos: Bruno Gomes Na comunidade de Barrinha, em Saboeiro, é mais conhecido como “Jaguaribe Criminoso”. O povoado fica nas margens do Jaguaribe, mas até no raso só entra quem tem coragem ou não sabe do que o rio é capaz. Como se fosse ontem, os moradores de Barrinha lembram o dia em que Antônio Alves voltava de uma festa do outro lado do rio com o filho, João Neto, de três anos de idade, nos braços. Era quase meia-noite. Uma pequena barragem liga uma margem a outra do rio e faz estrada unindo a comunidade e “Toinho” ao caminho de volta para casa. Mas um tropeço na passagem molhada, escorregadia, e os dois caíram. João, dentro da água. O instinto de pai para salvar superou até o fato de não saber nadar. Maria Nazário, vizinha, vinha logo atrás com filha pequena também nos braços, gritava em desespero como uma sirene. A comunidade atendeu. O farol de uma moto apontou para o rio. Cerca de 20 minutos depois, pai e filho foram encontrados, 15 metros distante da barragem, num trecho do rio que não tinha três metros de profundidade, lembra Antônio Clemente, que tentou, em vão, salvar pai e filho. “Quando encontrei, estavam abraçados”. A comunidade não dormiu naquela noite. Até as crianças de hoje conhecem a história, ocorrida há 25 anos. Fosse um homem, o Jaguaribe teria sido açoitado até a morte, como fazem por ali se alguém mata uma criança. Morte e vida A antítese é o que une homem e rio. Por ser o que também oferece vida, o Jaguaribe não é confrontado, se não defendido: “houvesse um corrimão, que hoje tem, Antônio de Sousa e João Neto talvez não tivessem caído na água”, alega Clemente. Além do mais, o rio traz peixe, alimenta a plantação e fornece água para casa. Para quem fica, sobra a dor de uma coleção de dores no povoado de Barrinha, das diferentes formas de o rio laçar suas vítimas. Em todo o percurso do Jaguaribe, margeado por nós no intervalo de 10 dias, há várias lembranças de homens e meninos “engolidos” pelas suas águas. Em Orós, uma lavadeira da comunidade de São Geraldo, sofreu trombose numa das pernas e não conseguiu sair da água. Foi arrastada pela correnteza até 400 metros depois. “Empuxo” Quando passa entre os municípios de Limoeiro e Tabuleiro do Norte, o Jaguaribe é ainda mais perigoso. Levou até quem já estava acostumado às suas águas. No entorno da passagem molhada, entre as duas cidades, construiu-se um balneário. Praça de lazer, sobretudo nos fins de semana. Tem também a única placa de aviso encontrada na expedição pelo Jaguaribe. Há um ponto, no meio do seu percurso, em que, nos últimos três anos, foram registradas cinco mortes por afogamento. Em todos os casos, apurou-se que as vítimas sabiam nadar. O lembrete de que bebida e volante não combinam pode ser aplicado ao banho de rio. “Mas há casos em que o sujeito estava só tomando banho”, lembra o bombeiro e guarda-vidas Lauro Maia. “Tem uma área em que há um empuxo e ninguém deve ir para lá”. O rio foi fatal para o marido Raimundo e Francisco, o filho mais velho de Maria do Socorro de Jesus Lima, moradora do Córrego de Areia, em Limoeiro do Norte. Estavam pescando sentados na beira da barragem quando o filho escorregou. Tentando salvar, o pai afogou-se junto. Saíram de casa cedo, mas só seus corpos retornaram. Ficaram os dois filhos mais novos. Quando Reginaldo, 19, sai de casa, não importa se para o rio ou para a rua, a preocupação de mãe não precisa ser pessimista para imaginar o pior. Não para quem recebeu em casa marido e filho mortos feito peixe que não sabia nadar. Desde então, do Jaguaribe só vem peixe pescado pelos “de fora”. Após a morte de Raimundo e Francisco, a derradeira vez que foi ao rio, Socorro mandou o filho Reginaldo aprender a nadar, saber lutar contra a água. Não quer filho pescador. Não quer perder mais ninguém. A dor de perder o marido e um filho “só sabe quem passa”. Melquíades Júnior Repórter De gota em gota corre o sangue da pistolagem No Vale do Jaguaribe, o sertanejo é, antes de tudo, um valente. Homem que não for brabo não é dessas terras. Fosse cearense, Virgulino Ferreira, o Lampião, certamente teria nascido à beira do “Rio das Onças”. Fenômeno social que se arrastou por vários sertões, a valentia transgressora, um eufemismo para o banditismo, gera orgulho e preconceito até hoje na região conhecida como “terra de pistoleiro”. Parando à beira da estrada para tomar água, este repórter é silenciosamente interrompido por um homem que se espreguiça no balcão, forma sutil de revelar, para os “de fora”, o cabo de um revólver 38 enfiado na calça. Como as cercas de arame farpado, os capangas, geralmente agregados do senhor da fazenda, são delimitadores de espaço. Pelas cidades ribeirinhas, o medo é uma das marcas do vale jaguaribano. Quem foi recebido com honrarias, pelo prefeito de Limoeiro do Norte, ao se aproximar do Jaguaribe, foi Lampião, o temido destemido, com seu bando, que, em junho de 1927, fugia de Mossoró (Rio Grande do Norte), onde foi recebido a balas, na primeira grande resistência ao Rei do Cangaço. Tradição As águas do Jaguaribe carregam, há séculos, o dissabor de ser local de desova de quem perdeu a vez. Quando os índios foram expulsos, na Guerra dos Bárbaros, entre 1893 e 1710, famílias instalaram-se em sesmarias, às suas margens. Na histórica briga pelo poder nessas terras coloniais, não havia defesa da honra sem sangue. Pistoleiro tornou-se uma profissão, como vaqueiro, agricultor ou pescador. Os agentes governamentais tentaram, mas não conseguiram evitar a capangagem e a proteção senhorial. “Ninguém poderá conservar em suas terras pessoas agregadas sem emprego de agricultor, artes, indústria ou outro honesto trabalho, de que possa subsistir com sua família”, dizia, em 1851, documento proposto pela Câmara de Riacho do Sangue (no atual município de Jaguaretama). Mas as leis governamentais não ultrapassavam os limites de interesses do coronel da fazenda. Nem polícia ou juiz. Quando 17 homens foram recrutados, em 1868, para atuar na Guerra do Paraguai, um grupo três vezes maior interceptou a escolta dos soldados entre Icó e Orós e os libertou. Relatórios do presidente do Estado Pedro Borges fazem referências, em 1903, à rixa entre o grupo de José Dantas e os Bocas em conflitos que se arrastaram por Jaguaribe, Iguatu, Iracema e Potiretama. Nos últimos dois séculos, as brigas são iguais, só mudam os sobrenomes. Coincidência ou não, o perigo é maior nas cidades derivadas do Jaguar: Jaguaribe, Jaguaretama, Jaguaruana e Jaguaribara. Mas ficou para Limoeiro do Norte um dos casos mais emblemáticos de pistolagem no século XXI. José Roberto dos Santos matava com tiros na cabeça, arrancava as orelhas e colocava na boca da vítima. Por isso, aos 23 anos, ficou conhecido como “Chico Orelha”. Foi morto na troca de tiros com a Polícia do Rio Grande do Norte. Na Missa de Sétimo Dia, o “santinho” foi revelador: “Morri, mas só me entreguei a Jesus”. A dor da perda Impiedoso com quem não respeita a sua força Maria do Socorro de Jesus Lima, 57, ainda guarda na memória e na parede da sua sala a imagem do marido e do filho mais velho, levados pelas águas do Rio Jaguaribe, em Limoeiro do Norte. Ela nunca permitiu que os filhos que lhe restaram voltassem ao rio para pescar e exigiu que aprendessem a nadar. Peixe em sua casa, só pescado pelos “de fora” Fonte: Diário do Nordeste
Zeudir Queiroz

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